Tuesday 23 April 2013

oswald de andrade

Tiago Silva
*

O Sul-Americano Calabar

Torcida indígena a favor de um imperialismo "civilizador". Leitor pequeno-burguês, não será você?
No Brasil há duas correntes de opinião: os que acreditam que a guerra holandesa acabou e os que sabem perfeitamente que ela continua, através de fundings, empréstimos e tomadas de poder por este ou aquele grupo calabarista.

~ Oswald de Andrade

Monday 22 April 2013

poesias de boaventura de sousa santos

CONFRARIA - arte e literatura
http://www.confrariadovento.com/revista/numero8/poesia01.htm





boaventura de sousa santos

viagem a centro da pele


 

Ao Espelho no Hostal del Bosque Izquierdo
 
Estou relativamente sólido
entre duas velas
neste hostal errado onde moro devagar
às cinco horas da manhã
quando a cama se enche de condições
e os enigmas, tal como o arroz, só fazem bem
aos intestinos.
Este vidro é uma engrenagem agitada
pelo tremor dos anos e das vísceras:
o álcool concentra-se na urgência de ser útil
enquanto os astros elásticos
explodem em desastres de papel.

A virtuosidade ociosa das mãos
sobre um sexo morto
provoca humildades inimagináveis
que não vêm de dentro nem de fora.

Só as sementes estão no lugar
acondicionadas num museu de espaços.

As águas pensam.
Quando pensam muito
chamam-se espelhos.

 

Jantar numa Sala Deserta

E um retrato obscuro ou incompleto:
não amanhece nem há sombras,
dois corvos, talvez dois corpos
oscilam a meia altura
entre uma cama ofegante ou irrespirável
e um vaso de sumo violento
ou apenas desconfiado do sucedido

a composição dos fragmentos
parece mover-se por descuido
e aproxima-se de um rasgo fundo
onde está uma mãe
à espera
por engano

o desassossego
concentrado onde não deve:
a doce fibra do ventre
entretém-se à beira do gozo
com palavras milenárias
para guardar o sangue dentro.

Os ventos
levam sempre as instruções do corpo
até onde não há vento
 


Um Cigarro no Bradley's

Sempre que acendo um fósforo
com o micro-rigor que recomendas
queimo-me
e a todas as cautelas em redor

reduz-se a razão
às razões que temos,
concentra-se o futuro
nas proximidades,
repetem-se erros fanáticos
até parecerem diplomas
de descuidos bem estudados

entretanto os séculos
acumulam-se e o corpo
mesmo deitado
tropeça

só o fim começa
 


Os Pássaros de Fordwich

Escrevo-te ao microscópio
e pergunto-me se é comum
não ser parecido com o nome.

Sei que é portátil
e de arrumação instantânea
como os botões e as chaves
mas também sei
que nos tamanhos mais perfeitos
não cabem coisas simples
como a tesão inesperada da tarde
ou a língua avulsa do sexo
que me deixa à rédea solta
até poder estar de volta.

Se me perderes
chama ao acaso pelos pássaros de Fordwich
pelo cormorant, crested grebe, canada
goose, moor hen, coot, swan,
cygnet
talvez acertes,
se não em mim,
em quem estiver perto e me conheça.

O nome é uma imitação
que alastra e dura.



Superfícies Apetecidas


Os aromas não chegam a incendiar.

Os lugares são breves
e não se entregam até ao fm:
entretanto escurece
e o dia seguinte já não é aqui.

Estão proibidas as palavras numerosas,
mas ninguém está preparado
para verdades abruptas.

Debruço-me o mais que posso:
não vejo mais que os pés,
carne dupla
que nem sequer exagera
e caminha para mim como um parente afastado
que terei esquecido anos a fio
entre a louça da cozinha.

Vou e venho no mesmo bar
inconsistente como as conclusões
que ficam para depois:
terei desobedecido a algum anúncio?

 

Se Eu Fosse Mulher

Se eu fosse mulher,
teria uma história pessoal para contar.
Se eu fosse mulher,
diria as amenidades do costume
de modo impessoal e com os dentes cerrados
para não ofender as autoridades.
Se eu fosse mulher,
diria obrigada, obrigada
e seria obrigada a dizê-lo até estar grata.
Se eu fosse mulher,
sentiria a revolta do corpo
que chega sempre tarde de mais
por culpa d'outrem.
Se eu fosse mulher,
entraria em casa como quem sai de si
e sairia de casa como quem sai de si.
Se eu fosse mulher,
trocaria mil carícias
por uma e um discurso
sobre o preço justo.
Se eu fosse mulher,
estava sempre à entrada e à saída dos poderes
nunca dentro, sempre fora,
e sem mostrar vontade de entrar ou de ir embora.
Se eu fosse mulher,
teria filhos e os filhos dos meus filhos
e talvez ainda fosse culpada pelos filhos dos outros.
Se eu fosse mulher,
estaria aqui e ali, agora e sempre,
amanhã e depois, em cima e em baixo,
sem nunca poder estar por estar,
ou estar talvez
ou não estar nunca.
Se eu fosse mulher,
não me podia esquecer dos aniversários
nem das coisas simples como pílulas e preservativos
ou como menstruar-me fora dos fins de semana.
Se eu fosse mulher,
a população toda do mundo dependeria de mim,
mas como se fosse eu a depender dela.
Se eu fosse mulher,
leria as cartas
e seguiria à risca os sentimentos
sem poder dar nada a entender.
Se eu fosse mulher,
daria ao mundo todos os orgasmos
sem deixar nenhum para mim.
Se eu fosse mulher
teria à minha disposição um catálogo de doenças
e só se fosse puta ou louca
me serviria para além dele.
Se eu fosse mulher,
preparava a comida a pensar em explosivos.
Se eu fosse mulher,
teria de me deitar devagar,
não fosse o sono acordar.
Se eu fosse mulher,
sentiria as mãos onde não queria
e quereria as mãos onde as não tinha.
Se eu fosse mulher,
teria de fazer do trabalho alegria e da alegria trabalho e do trabalho trabalho e da alegria tristeza.
Se eu fosse mulher,
teria de me sentir em ruínas
para alguém se não sentir em ruínas.
Se eu fosse mulher,
teria de esperar que alguém me dissesse
e esperar o momento para lhe dizer que não me dissesse.
Se eu fosse mulher,
teria de cair nos braços com mil cuidados
para cair no lugar e no momento certos
e sobretudo para não magoar.
Se eu fosse mulher,
desejaria repetidamente Bom Natal, Feliz Ano Novo, feliz aniversário a toda a gente
e defender-me-ia em silêncio
de quem me desejasse tudo
de repente.
Se eu fosse mulher,
teria de dar prazer às claras
para ter prazer às escondidas.
Se eu fosse mulher,
o mundo esmagar-me-ia com gratidão.
Se eu fosse mulher,
teria de tomar conta de quem toma conta
até cair de bruços
nos meus braços.
Se eu fosse mulher,
cantaria o futuro no supermercado
e usaria o tempo entre o jantar e o arrumar da cozinha para escrever um grande poema.
Se eu fosse mulher,
o meu computador estaria decorado de recados domésticos,
tais como, sal, arroz, fraldas, aniversário, dentista,
escola, pediatra, lâmpadas, sobremesa, luz, telefone.
Se eu fosse mulher,
daria a Deus o que é de Deus
e a César o que é de César
e seria egoísta se reclamasse
de não ficar nada para mim.
Se eu fosse mulher,
ao menos viveria mais tempo
estatisticamente.
Se eu fosse mulher,
seria demasiado honesta, por não ser puta,
e demasiado puta, por não ser honesta.
Se eu fosse mulher,
não haveria melindres que me melindrassem
e apertaria o coração violentamente
até ele se abrir a toda a impertinência.
Se eu fosse mulher,
investigariam o meu corpo cientificamente
e eu leria os resultados nos jornais
sem me deixar ofender por tanta eloquência.
Se eu fosse mulher,
seria mortal
apesar de viver mais tempo
que os imortais da família.
Se eu fosse mulher,
iria passear preocupada com o passeio
despreocupado das crianças e do marido
e com a preocupação dos que passeiam preocupados
ou nem sequer passeiam
para não se preocuparem.
Se eu fosse mulher,
teria de ter ânimo para me vestir e despir
segundo a moda e o emprego,
e manter a calma
apesar do medo
na alma.
Se eu fosse mulher,
teria de servir Deus, Pátria e Família
e ficar à espera dos deveres
sem poder dizer que o Diabo escolha.
Se eu fosse mulher,
quereriam que eu fosse mulher
e eu seria,
mas só na condição de o homem
ser apenas homem
tanto de noite como de dia.
 


BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison. É um dos principais pensadores das questões sociais contemporâneas em língua portuguesa. Sociólogo, autor, entre outros, da coleção Reinventar a emancipação social: para novos manifestos, em sete volumes, da editora Civilização Brasileira. Mais conhecido como pensador, é autor de Escrita INKZ, livro que o lançou como poeta no Brasil. Os poemas acima, inéditos, fazem parte de um próximo livro, a ser lançado pela editora Aeroplano.

A Cooperação Internacional na Universidade Nacional de Timor-Leste

global education magazine
http://www.globaleducationmagazine.com/a-cooperacao-internacional-na-universidade-nacional-de-timor-leste-contribuicoes-para-a-melhoria-da-educacao-e-desenvolvimento-timorense/


A Cooperação Internacional na Universidade Nacional de Timor-Leste: contribuições para a melhoria da educação e desenvolvimento timorense

Valdir Lamim-Guedes
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências de Rio Claro
e-mail: dirguedes@yahoo.com.br


Carlos Junior Gontijo-Rosa
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas.
e-mail: carlosgontijo@gmail.com

 Disponível para cegos
Resumo: Desde sua independência, em 2002, Timor-Leste busca solucionar vários desafios, como a geração de renda e empregos, melhoria nas condições de saúde, educação e administração pública. O país tem recebido diversas cooperações internacionais. No campo da educação, a principal contribuição vem dos países chamados lusófonos, que têm a língua portuguesa como oficial, especialmente Portugal e Brasil. Neste artigo, apresentamos o relato de nossas experiência no primeiro semestre e 2012, como professores-visitantes na Universidade Nacional de Timor-Leste.
Palavras-chave: Timor-Leste, Educação, Cooperação Internacional, Autodeterminação, Língua Portuguesa.

The International Cooperation at the National University of Timor Leste: Contributions to the Progress of the Timorese’s Education and Eevelopment
Abstract: Since its Independence, in 2002, Timor-Leste search how to solve its challenges, as to create income and jobs, improve health conditions, education and governamental status. The country has been many international aid. At the educational field, the main contribution come from the named Lusophone countries which has the Portuguese language as official, specially Portugal and Brazil. In this paper, we present our experiences’ report at the 2012 first semester as visiting professors at the National University of Timor-Leste.
Key Words: East Timor, Education, International Cooperation, Self-Determination, Portuguese.
“Educar é impregnar de sentido o que fazemos a cada instante!”
Paulo Freire (1921 -1997)

Timor-Leste: um pouco da história de sua autodeterminação
Timor-Leste é um pequeno país do sudeste asiático, localizado entre a Indonésia e Austrália, que tem pouco mais de 1 milhão de habitantes. Alcançou a independência unilateral de Portugal em 1975 e alguns dias depois foi invadido pela Indonésia, que instalou um violento regime ditatorial. Em 30 de agosto de 1999, foi realizado um referendo, organizado pela ONU, para decidir sobre a independência ou integração à Indonésia. O resultado do referendo – mais de 97% de participação popular; 78,5% pela independência – foi seguido por uma onda de violência a que se chamou “Setembro Negro”. Algumas regiões do país tiveram mais de 75% das casas destruídas em setembro de 1999.
Como relata a jornalista brasileira Rosely Forganes, que chegou em Díli algumas semanas após o referendo, apesar do cenário de destruição, ouvia-se pelas ruas “queimado, queimado, mas agora nosso!” (Forganes, 2002, p. 28). A ocupação, mantida à força pelo governo do general Suharto causou, relativamente, um dos maiores genocídios do século XX – com mais de 30% de timorenses mortos direta ou indiretamente pelo conflito (Sakamoto, 2006).
O referendo não foi um acontecimento isolado. Na década de 1980 e início da década de 1990, a situação parecia caminhar para um desfecho em que a comunidade internacional acabaria por aceitar, como fato consumado, a integração do território timorense à Indonésia (Cunha, 2001). No entanto, a guerrilha armada e a pressão da diplomacia exercida pelos timorenses no exílio, além do governo português e a participação dos outros países lusófonos foram forças contrárias ao processo de anexação. Assim como a resistência da população, tanto por contribuir com os guerrilheiros, fornecendo abrigo e comida, como por insistir em manter-se culturalmente diferenciada da Indonésia, por exemplo, falando português e sendo católicos.
Dois fatos importantes no processo que levou a independência foram o Massacre de Santa Cruz (12 de novembro de 1991), repressão violenta da polícia indonésia a uma passeata pró-independência, com mais de 270 timorenses foram mortos, que fez ser hasteada a bandeira em defesa dos direitos humanos. E em 1996, a entrega do Prêmio Nobel da Paz ao Bispo Católico Carlos Filipe Ximenes Belo e à José Ramos-Horta, “pelo trabalho em direção a uma justa e pacífica solução para o conflito em Timor-Leste” (Nobel Prize, 1996).
O referendo de 1999 foi o fim da dominação indonésia e o início de um período de transição para a autonomia. Entre 1999 e 2002, o país foi administrado pela ONU, com a Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNAMET), sendo restabelecida a Independência em 20 de maio 2002.
Apesar da instabilidade inicial, com incidentes em 2006 e 2008, os últimos anos têm sido mais tranquilos, com o crescimento econômico impulsionado pela extração de petróleo. Em 20 de maio de 2012, o Presidente Ramos-Horta passou o controle do país ao general Taur Matan Ruak, ex-chefe das Forças Armadas timorenses. Após o resultado das eleições parlamentares (julho de 2012), houve a formação do novo governo. Durante alguns dias, a população evitou sair de casa e carros foram destruídos. Apesar da tensão, a tranquilidade foi retomada.
Desde 1999, o país tem convivido com a presença da ONU e a cooperação de diversos países, como Portugal, Austrália, Cuba, Japão, China e Brasil em diversas áreas, como infraestrutura, saúde, desenvolvimento agrário e educação. A cooperação internacional tem sido essencial em Timor-Leste, por falta de recursos, tanto financeiros, como humanos, para exercer muitas funções, desde administrativas do Governo, até de formação e implementação de formas de subsistência no país.
A cooperação Brasileira na área educacional em Timor-Leste
O cenário criado pela colonização portuguesa, invasão indonésia, presença australiana e uma cultura riquíssima em termos linguísticos fez com que no Timor-Leste convivam muitas línguas: as oficiais português e tétum, além de mais 31 línguas nativas, inglês e indonésio. No entanto, até o presente momento, nenhuma dessas línguas é falada por toda a população (Pazeto, 2011). O português foi escolhido como língua oficial, junto ao tétum, por sua importância histórica e política – pelo período de colonização e pela resistência contra a ocupação indonésia -, e favorecer a inserção do país no cenário internacional. Por estes motivos, tem sido estimulada a reintrodução da língua portuguesa (Lamim-Guedes e Gontijo-Rosa, 2011). A autodeterminação do povo timorense tem-se configurado com a proteção e estímulo à cultura tradicional e ao incentivo ao uso da língua portuguesa.
A primeira cooperação na área educacional entre Brasil e Timor-Leste se concretizou em 2003, com seis professores enviados oficialmente pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), agência do governo brasileiro de fomento a pesquisa científica e ensino superior e pós-graduação. Esta missão objetivou a estruturação de um currículo nacional, a redação da Lei Básica de Educação Nacional e assistência à estruturação de uma política de treinamento de professores (Bormann e Silveira, 2007).
A primeira constatação desta missão foi o reduzido domínio do português por parte dos professores de escolas secundárias, problema especialmente sério porque, como já dito, o português foi reconhecido como língua oficial ao lado do tétum (Bormann e Silveira, 2007). Isto se deve essencialmente a dois motivos: primeiro, a presença portuguesa no período colonial foi reduzida, sendo a língua mais utilizada o tétum; segundo, e mais importante, a Indonésia proibiu o uso da língua portuguesa durante o período de ocupação. Desta forma, a geração com menos de 35 anos, em 2002, não falava ou falava pouco português. Soma-se a isto, a educação de baixa qualidade no país, assim como na Indonésia, com prática conservadoras e pouco didáticas.
As dificuldades das missões sempre esbarram na comunicação, dado o pequeno domínio do português e, muitas vezes, a resistência dos timorenses à presença de estrangeiros (Bormann e Silveira, 2007). Estas dificuldades foram relatadas como comuns às diferentes missões brasileiras na área educacional em Timor-Leste (Santos, 2011). Além disto, a instabilidade em Timor-Leste também foi um complicador, como aconteceu em 2006 e 2008(Pazeto, 2011), ou no caso de julho de 2012, pelas tensões após a formação do novo governo.
Cooperação técnico-científica com a UNTL
Em fevereiro deste ano, chegamos em Timor-Leste com um grupo de 30 brasileiros e 4 portugueses, professores convidados na Universidade Nacional de Timor-Leste (UNTL), a única instituição pública dedicada ao ensino superior no país. Um dos principais objetivos é inserir o ensino em língua portuguesa nos primeiros anos dos cursos desta Universidade, além de melhorias no âmbito técnico e científico.
Faremos uma apresentação geral do que observamos na UNTL e, a seguir, uma descrição de nossas atividades. Ressaltando que, diferentemente dos grupos enviados pela CAPES, esta não era uma cooperação brasileira oficial, mas um projeto que partia da própria Universidade, ou seja, éramos trabalhadores estrangeiros contratados pela UNTL.
Mesmo com aulas de língua portuguesa em toda sua formação escolar, os alunos ainda encontram grandes dificuldades no uso do idioma. O português é visto como língua erudita, restrita ao espaço escolar acadêmico – ainda assim, com ressalvas -, e pouco voltada para a comunicação cotidiana, mesmo nos pátios da UNTL. O mais surpreendente, no entanto, é que os alunos sabem muito da gramática da língua, mas, de modo geral, não são capazes de, satisfatoriamente, interpretar o que leem ou comunicar um pensamento mais elaborado. Isso pôde ser constatado durante as atividades desenvolvidas com os alunos da Faculdade de Educação Artes e Humanidades da UNTL (FEAH-UNTL).
Isto, provavelmente, indica uma abordagem pedagógica autoritarista, voltada para a memorização de informações desconexas com a realidade dos alunos – chamada de “concepção bancária da educação” pelo educador brasileiro Paulo Freire (1987). Segundo esta abordagem, o professor é o único detentor da informação e está disponibilizando parte de seu conhecimento para os alunos, sendo estes meros aprendizes. Pudemos observar que a posição adotada pelos professores timorenses em sala de aula enquadra-se nesta concepção. Além disto, o conhecimento do docente é tido como absoluto, não sendo levada em conta a diversidade de opiniões sobre um mesmo assunto. Com isto, a aprendizagem dá-se basicamente pela memorização de informação, com menor destaque para o desenvolvimento de opinião crítica e de pensamento lógico e abstrato. Somado a isto, boa parte dos docentes utiliza a língua indonésia nas atividades acadêmicas.
O nosso grande desafio em Timor-Leste, portanto, foi tentar ajudar para que os alunos pudessem interpretar os textos que leem, independentemente da disciplina, e analisar de forma livre e crítica a informação disponível. Além disto, buscamos uma relação de diálogo com os alunos, que favorecesse o exercício do debate, exercendo uma abordagem contrária a concepção bancária, ou seja, uma “concepção libertadora da educação” (Freire, 1987).
Além da abordagem educativa opressora, há ainda uma grande carência de material didático, especialmente livros, quer didáticos, técnicos ou paradidáticos. A maior parte do que existe está em língua indonésia e é, geralmente, pouco atualizado. Assim, preparar aulas e material didático que atenda às necessidades e ao domínio do idioma português pelos alunos, constitui outro desafio a ser superado. Apesar do trabalho realizado pelas cooperações portuguesa e brasileira na produção de material didático para o ensino das crianças e jovens, este ainda é raro no ensino superior.
Ao todo, trabalhamos com cerca de 235 alunos dos Departamentos de Química e Física da FEAH-UNTL, distribuídos em duas turmas do primeiro ano e duas do segundo ano do curso de Licenciatura em Química (cerca de 120 e 50 alunos, respectivamente), em uma turma do primeiro ano do curso de Licenciatura em Física (17 alunos) e em cinco grupos dos Encontros de Intercâmbio Cultural em Língua Portuguesa (cerca de 50 participantes entre alunos e professores). Passado um semestre letivo, nossa observação e convívio com os alunos e docentes da UNTL trouxe algumas questões, que gostaríamos de compartilhar.
Língua Portuguesa para a formação do estudante
O primeiro objetivo da Cooperação na UNTL era apresentado no edital de seleção dos docentes para esta cooperação, da seguinte forma: “difundir a língua portuguesa como veículo de ensino, por meio da ampliação do corpo docente lusófono e da paulatina capacitação dos seus quadros no referido idioma” (Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011). Ao chegar em sala de aula, percebemos que a situação dada era um tanto diferente da proposta inicial do projeto. Particularmente nas aulas de Língua Portuguesa, havia apenas uma professora escalada para quase todas as turmas da FEAH-UNTL, professora esta que também ministrava todas as aulas da Faculdade de Ciências Sociais e Políticas, ao menos oficialmente. Na prática, estávamos em sala de aula só nós e os alunos.
Entre os alunos que conhecem muito bem a Língua Portuguesa e aqueles que mal conseguem estabelecer uma comunicação básica, a grande maioria possui um domínio relativo da língua, sabendo muito bem a parte gramatical, mas tendo sérias deficiências em aplicação na prática de sala de aula e no cotidiano.
Assim, nas aulas de Língua Portuguesa ministradas aos primeiros anos dos Departamentos de Química e Física da FEAH-UNTL, priorizamos a questão do Português como instrumento de ensino e aprendizagem, uma vez que, teoricamente, todas as aulas destas turmas seriam ministradas nesta língua. O enfoque, neste semestre, foi sobre a questão da leitura e da interpretação de textos, pois se buscava a facilitação no acesso às informações, e na redação em trabalhos, provas e TPCs (Tarefas Para Casa). Ao mesmo tempo, por lidar com uma parte da língua mais familiar aos estudantes, a saber, questões semânticas e sintáticas – mas sempre extrapolando-as –, buscou-se deixá-los mais seguros e confiantes, neste primeiro contato com um mundo de novidades, inclusive a própria didática dos professores brasileiros.
Em sala de aula, trouxemos à baila textos científicos ou paracientíficos e textos narrativos, especialmente fábulas. Assim, pensamos que pudemos iniciar um trabalho com as duas principais vertentes interpretativas: a busca da verdade e a “mentira” contida num texto ficcional. Ao lidar com o texto científico, iniciamos o processo de entendimento dos pontos de vista contidos nos discursos científicos, a sua busca pela verdade, a sua incompletude enquanto discurso, por ser um ponto de vista específico, e o papel do leitor, no caso estudante, ao ler um texto desse tipo, buscando contribuir para a formação dos alunos enquanto leitores críticos. Ao lançar mão do texto ficcional, buscou-se a autonomia imaginativa do leitor/aluno perante o texto narrativo. Desta forma, tentamos “libertar” os alunos da literalidade na leitura dos textos, quer científicos, quer ficcionais, legitimando o seu próprio pensamento, instigando e incentivando a também eles serem produtores de conhecimento.
A busca da autonomia no processo de ensino-aprendizagem
Ao comentar a didática dos professores brasileiros, quase diametralmente oposta à dos professores timorenses com que os alunos tiveram contato no ensino primário e secundário, não podemos nos esquecer das discussões desenvolvidas em sala de aula na disciplina Pedagogia do Ensino, ministrada ao primeiro ano do curso de Licenciatura em Física da FEAH-UNTL.
Nesta disciplina, que enfoca as questões de Filosofia da Educação e perpassa a História da Educação, tivemos por opção as aulas expositivo-dialogadas. Mesmo que, por vezes, não conseguíssemos nos aprofundar muito nos assuntos tratados em aula, acreditamos ter sido nesta disciplina que melhor atingimos nosso objetivo. Nosso maior interesse era fazer com que eles criassem e expressassem a sua opinião sobre “dar aulas”.
No início, criamos um programa de ensino que abordaria princípios básicos, mas de difícil compreensão, como pedagogia, filosofia, educação. Nestas aulas, mais expositivas, houve sempre de nossa parte uma instigação ao diálogo. Quando já havia uma familiaridade maior conosco, mudamos o direcionamento das discussões para assuntos mais concretos: o que é o professor?, qual é o papel do aluno?, o que é ensinar? Sempre estabelecendo a discussão a partir do material dado, mas também a partir do próprio pensamento dos alunos sobre os temas, ainda de forma geral.
Seguindo a ementa da disciplina, que prevê a “aplicação de tais conceitos nas atividades pedagógicas realizadas em sala de aula”, iniciamos o diálogo sobre as suas opiniões acerca da nossa forma de ensinar. Qual não foi a nossa surpresa quando, pela primeira vez, houve uma opinião contrária em sala de aula. Uma das alunas decididamente não concordava com a nossa didática. Evidentemente que ela não disse isso com todas as palavras, pois o medo que eles tinham da figura do professor ainda era muito grande, mas ela deu a entender, muito claramente, isto. A partir de então, legitimando a posição da opositora, conseguimos começar a estabelecer as discussões sobre autonomia.
Ao final da disciplina, que foi satisfatório para ambas as partes, a mensagem a que chegamos, juntos, foi de que “o professor deve fazer aquilo que for melhor para que o seu aluno aprenda”. Não houve grandes mudanças de pensamento ou de vida, mas uma ideia foi plantada. Este era nosso objetivo.
Ações educativas sobre meio ambiente e química
Em 2006, foi elaborada a Carta de Brasília pelos países membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), documento que propõe um pacto de cooperação para superar os desafios dos problemas ambientais. Segundo o documento, é imprescindível a formação de profissionais para atuarem no enfrentamento de desafios como mudanças climáticas, fontes renováveis de energia, desastres ambientais, biodiversidade, recursos hídricos, gestão de zonas marinhas e costeiras, ameaças ambientais à saúde humana, desertificação e efeitos da seca, todos apontados na Carta. A educação ambiental foi definida como a primeira das prioridades.
Propõe-se, portanto, desenvolver a formação em educação ambiental numa perspectiva histórico-crítica através de atitude dialógica e com uma abordagem teórico-prática sobre os problemas ambientais de Timor-Leste e as suas relações com o mundo globalizado. Seguimos, portanto, a concepção de temas transversais proposta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997). Ética, meio ambiente, orientação sexual, pluralidade cultural, trabalho, consumo e saúde, os temas transversais, expressam conceitos e valores básicos à democracia e cidadania. Tratá-los de forma transversal quer dizer que eles devem permear todas as discussões travadas em sala de aula.
Neste sentido, durante as aulas de Português Específico – disciplina do segundo ano do curso de Licenciatura em Química, voltada para a melhora na compreensão do português técnico – eram lidos e debatidos textos sobre problemas ambientais que afetam a comunidade timorense, como mudanças climáticas e o aumento de eventos extremos, poluição da água, saneamento ambiental, produção de alimentos, problemas que fazem parte do cotidiano dos alunos. Por exemplo, na capital Díli, o esgoto corre em valas a céu aberto, fator que gera poluição da água e risco de transmissão de doenças.
Na disciplina Química Geral, ministrada aos alunos do primeiro ano do curso de Licenciatura em Química, o debate sobre meio ambiente foi um pouco mais complicado, pelo conteúdo da disciplina, mas realizado quando possível. Parte importante nesta disciplina foi dedicada à alfabetização científica dos alunos, ou seja, o estímulo à apropriação do conhecimento, entendimento e habilidade requeridos para uma atuação efetiva na vida cotidiana, em função da importância do papel da ciência, da matemática e da tecnologia na vida moderna (CAZELLI et al., 2003, p. 84). Foram realizadas leituras, debates e atividades nas quais ressaltava-se como a ciência é feita, sua natureza dinâmica e que o conhecimento é constantemente alterado e testado.
Ao fim do período, foi possível discutir de forma mais concreta com os alunos a importância que eles poderão ter “para desenvolver a nação Timor-Leste” – frase muito repetida por eles. Acreditamos que boa parte disto foi possível através da troca de opiniões dos alunos com os professores em sala de aula. Com isto, estimulamos a opinião crítica dos estudantes, essencial para o amadurecimento da recém-estabelecida democracia timorense.
Atividades voluntárias
A atividade que mais suscitou questionamentos sobre a nossa atuação dentro da comunidade acadêmica timorense foi o convite feito pela Associação Discente do Departamento de Química (ADDQ) para ministrar aulas aos alunos dos demais anos, interessados em aprender português. Como já dito, nosso contrato previa apenas o ensino nos primeiros anos dos cursos de Graduação da referida Universidade.
O convite, feito aos professores brasileiros do Departamento de Química, era para que ministrássemos aulas de português. Mas, com a nossa formação e os mais diferentes níveis de aprendizado da língua entre os alunos, buscamos métodos alternativos para trabalhar aquilo que sentíamos importante para o melhor aproveitamento dos alunos. Iríamos falar em português (atividade pouco praticada pelos timorenses), para melhorar a comunicação, e ler, para aprender a interpretar um texto, de forma que o discurso dos alunos não se tornasse mera reprodução de frases ou, pior, uma compreensão errônea do conteúdo dos textos.
A organização das oficinas, a que chamamos de Encontros de Intercâmbio Cultural em Língua Portuguesa, foi pensada tendo em vista as nossas capacidades e pontos de vista em relação ao uso da língua, mas também visando os objetivos explicitados pelos alunos, especialmente na figura do então Chefe da ADDQ, Joanico da Costa Soares. Parafraseando o estudante, o pedido foi direcionado aos professores brasileiros porque, em breve, os então estudantes seriam professores do ensino primário e secundário, onde as aulas tem que ser ministradas em português, sabiam que o ensino em língua portuguesa é importante para firmar o país e gostariam de fazer o melhor possível, para o desenvolvimento da nação. O discurso, por vezes parecendo decorado, está arraigado no falar de todos os alunos com que tivemos contato. Se verdadeiro ou falso, legítimo ou forçado, fato é que o pensamento existe e se tenta colocá-lo em prática – mesmo que de forma discutível, em alguns casos.
Ao longo destes encontros, que teve um número variável de participantes, pudemos deixar os conteúdos mais maleáveis, trabalhando a produção de textos e, sempre, a autonomia do pensamento. Por serem atividades não curriculares, buscamos uma abordagem mais leve, para facilitar e suscitar o diálogo entre alunos, professores brasileiros e professores timorenses, que também se dispuseram a participar, como “alunos”, dos encontros.
Nestes Encontros, nas aulas de Química Geral e Português Específico, lançamos mão da utilização da música no processo de aprendizagem, com a intenção primeira de mostrar aos alunos que qualquer elaboração discursiva deve conter, em si, um vasto conjunto de conhecimento, articulado de acordo com uma linha de raciocínio. Assim, por exemplo, nos Encontros, através da música Fogo e Gasolina, cantada por Lenine e Roberta Sá, pudemos vislumbrar quanto conhecimento (mesmo que básico e, para nós, comum ou até banal) de ciências esteve envolvido na elaboração da poesia e da música, através das metáforas de conjuntos “explosivos” elencadas na letra da canção.
O clima de descontração da atividade, em nossa avaliação, não prejudicou a prática da língua. Além do que, com os diálogos mais abertos, pudemos exercer a verdadeira função de uma sala de aula, que é a troca de saberes entre os envolvidos na prática, ou seja, também nós ganhamos muito, por aprendermos um pouco sobre a cultura timorense. Por outro lado, pudemos contribuir para a desmistificação da língua portuguesa, tida entre os timorenses como língua culta, de elite e acadêmica. Aproximando a língua de sua função primordial, a comunicação, quisemos contribuir, também nós, para a autodeterminação deste povo através dos seus veículos culturais.
Sentimos a obrigação de sempre reforçar que apenas corroboramos a questão da autodeterminação demonstrada por parte dos estudantes e também professores dos Departamentos em que lecionamos e comentada acima. Buscamos contribuir, com admiração e respeito, para que a cultura local fosse valorizada pelos estrangeiros e pelos próprios timorenses. Acreditamos que o espírito de cooperação pressupõe a troca de informações e expectativas sobre os nossos países, mas repudiamos tentativas, conscientes ou inconscientes, de qualquer tipo de dominação ou imposição cultural.
Desafios timorenses
Os indicadores sociais preocupam: a taxa de crescimento populacional é a mais elevada na região e a incidência da mortalidade infantil, embora tenha melhorado, continua alta em relação a outros países da região. O país não produz alimentos suficientes para satisfazer o consumo mínimo diário, estimando-se que aproximadamente 350 mil pessoas estão na faixa de insegurança alimentar. A situação de determinados segmentos da população também foi se deteriorando: as disparidades de gênero e na educação estão aumentando e as oportunidades para a juventude urbana são particularmente limitadas, com o desemprego dos jovens urbanos em 44%. Além disto, novos problemas batem a porta, como as mudanças climáticas, que trazem alterações ao clima da região.
O cenário riquíssimo em termos linguísticos fez com que no Timor-Leste convivam muitas línguas. Neste sentido, a preservação da cultura do povo timorense é outro desafio para as próximas décadas. Muitos criticam a política linguística timorense, militando em favor do inglês como língua oficial. A estas, Ramos-Horta (2012) responde que a utilidade regional ou global de um idioma não conduz à conclusão de que devemos abandonar as nossas raízes históricas e culturais, adotando-o como língua oficial.
A conclusão que tiramos é que, independente da área do conhecimento, a melhor cooperação que talvez possamos exercer será contribuir para que os alunos possam ser senhores de seus destinos, que sejam críticos, até mesmo para decidirem se querem ou não estudar em português.
O povo timorense é um exemplo de persistência e coragem pela busca de sua autodeterminação. E este povo terá que permanecer muito corajoso e unido para conseguir melhorar as condições de vida e desenvolver a economia, de forma que o país possa ser mais independente da renda do petróleo.
“A gente pobre daquela esquina do mundo enfrentou por um quarto de século um dos maiores exércitos do planeta sem o apoio de quase ninguém e venceu. É possível tirar algumas lições de lá para a nossa realidade. A periferia do mundo enfrenta um período decisivo. Se puder se unir em torno de um mesmo inimigo – a pobreza, suas causas e causadores – conseguirá também se libertar e ser realmente independente” (Sakamoto, 2012).
Vida longa ao Timor independente!

Referências Bibliográficas
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Brasil. (1997). Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos Parâmetros curriculares nacionais. Brasília. Secretaria de Educação Ambiental.
Cazelli, S., Marandino, M., Studart, D. C. (2003). Educação e comunicação em museus de Ciência: aspectos históricos, pesquisa e prática. In: Gouvêa, G.; Marandino, M., Leal, M. C. Educação e Museu: a construção social do caráter educativo dos museus de ciência (p. 83-103). Rio de Janeiro. Access.
Cunha, J. S. C. (2001). A questão de Timor-Leste: origens e evolução. Brasília. Fundação Alexandre de Gusmão.
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Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro. Paz e Terra.
Lamim-Guedes, V.; Gontijo-Rosa, C. J. (2011). Desafios da docência no ensino superior por professores brasileiros em Timor-Leste. Jornal da Ciência. Retrieved in http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=81843
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Pazeto, A. E. (2011). Desafios da educação superior em Timor-Leste: da colonização à restauração da independência. In: Santos, M. A. Experiências de Professores Brasileiros em Timor-Leste: cooperação internacional e educação timorense (p. 223-236). Florianópolis. Editora da UDESC.
Ramos-Horta, J. (2012). Apesar de falhanços e críticas, balanço é “francamente positivo”. Agência Lusa. Retrieved inhttp://10anosindependencia.blogs.sapo.tl/4014.html
Sakamoto, L. (2012). Timor completa dez anos de independência com novo presidente. Blog do Sakamoto. Retrieved in
Sakamoto, L. (2012). Timor-Leste. Carta Maior, 01 jun. 2006. Retrieved in
Santos, M. A. (2011). Experiências de Professores Brasileiros em Timor-Leste: cooperação internacional e educação timorense. Florianópolis. UDESC.
Universidade Presbiteriana Mackenzie. (2011). Programa para a Seleção de Docentes Temporários para Atuação em Cursos de Graduação na UNTL – Timor-Leste. Retrieved inhttp://www.mackenzie.br/docentes_temporarios_untl0.html

Saturday 20 April 2013

NUESTRO NORTE ES EL SUR

NUESTRO NORTE ES EL SUR

Joaquín Torres Garcia
América invertida, 1943

"Tenho dito Escola do Sul porque, 
na realidade, nosso norte é o Sul. 
Não deve haver norte, para nós, 
senão por oposição ao nosso Sul. 
Por isso agora colocamos o mapa ao contrário, 
e então já temos uma justa ideia de nossa posição, 
e não como querem no resto do mundo. 

A ponta da América, desde já, prolongando-se, 
aponta insistentemente para o Sul, 
nosso norte.”

Joaquín Torres García. 
Universalismo Construtivo
Buenos Aires: Poseidón, 1941.
*

A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA

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A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA

Senhor:
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer.
Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo:
A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.
Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome  o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz.

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos
em direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez
horas pouco mais ou menos.
Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si.
E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete
vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal
grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.
Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.
E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento
duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço
e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram
sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora.
Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou
por qualquer coisa que homem lhes queria dar.
Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.
Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de
azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e
suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.
Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.
Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se.
À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite.
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique,
em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.
Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. E
alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que aí tinham -- as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.
Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele.
Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não.
Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.
Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra.
Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais
vinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.
E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem.
E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.
Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois
homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar.
E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.
E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado.
Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas
setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.
Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos.
A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio.
Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.
Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele.
Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.
Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.
Também andava aí outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum.
Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós
quantas coisas que lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia.
Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa,
mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.
Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado.
Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles
folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.
E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima
e sai a água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.
Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.
O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém.
Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não
pode mais ser.
Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhuma casa ou maneira delas.
Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes – disse ele – que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho.
E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.
E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.
Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles
andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas.
Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos.
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite.
Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.
Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tarde
fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.
Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse.
E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus.
À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.
Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.
Era já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores
que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que – eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar.
À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos.
Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.
E assim não houve mais este dia que para escrever seja.
À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.
Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para
cima. E vinha tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.
Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.
Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis.
Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água.
Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons
rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.
Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso,
em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.
Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.
Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo
do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão.
Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinqüenta ou mais.
Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.
E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.
Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse
alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção.
Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com
crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada um a sua ao pescoço. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.
Isto acabado  era já bem uma hora depois do meio-dia – viemos às naus a comer, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.
E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que
todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.
Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.
Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os
achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.
E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha